O dia em que Júpiter encontrou Saturno

Picasso

Dá-me mais vinho, porque a vida é nada.

“silêncio

– Quando a noite chegar cedo e a neve cobrir as ruas, ficarei o dia inteiro na cama pensando em dormir com você.

– Quando estiver muito quente, me dará uma moleza de balançar devagarinho na rede pensando em dormir com você.

– Vou te escrever carta e não mandar.

– Vou tentar recompor teu rosto sem conseguir.

– Vou ver Júpiter e me lembrar de você.

– Vou ver Saturno e me lembrar de você.

– Mesmo quando não estivessem mais juntos.

– Daqui a vinte anos voltarão a se encontrar.

– O tempo não existe.

– O tempo existe e devora.

– Vou procurar teu cheiro no corpo de outra mulher. Sem encontrar, porque terei esquecido. Alfazema?

– Alecrim. Quando eu olhar a noite enorme do Equador, pensarei se tudo isso foi um encontro ou uma despedida.

– E que uma palavra ou um gesto, seu ou meu, seria suficiente para modificar nossos roteiros.

silêncio

– Mas não seria natural.

– Natural é as pessoas se encontrarem e se perderem.

– Natural é encontrar. Natural é perder.

– Linhas paralelas se encontram no infinito.

– O infinito não acaba. O infinito é nunca.

– Ou sempre.

silêncio

– Tudo isso é muito abstrato. Está tocando Kiss, Kiss, Kiss. Por que você não me convida para dormirmos juntos?

– Você quer dormir comigo?

– Não.

– Por que não é preciso?

– Porque não é preciso.

silêncio

– Me beija.

– Te beijo.

[…]

        Mas as memórias de cada um eram tantas que ela imediatamete entendeu e aceitou, desaparecendo da janela no exato instante em que ele atravessou a avenida sem olhar pra trás.”

(Morangos Mofados –  Caio Fernando Abreu)

Deixe um comentário